Dona Vera trabalha como diarista na minha casa desde que me mudei para Moema.
Toda terça ela chega às 8:30 da manhã vindo lá de Suzano, 74 km de distância da minha casa, trajeto este que ela faz de trem, metrô e ônibus.
Chegou muito reservada, mas logo logo meu jeito entrão bem carioca a fez abrir um pouco a guarda para mim.
Senhora batalhadora, toda semana me ensina muitas coisas.
Diz sempre que não pôde aprender com a escola, então aprendeu com Jesus.
A conversão aconteceu depois que um dos seus filhos se envolveu com o crack. Implorou para Deus que o tirasse daquela vida e que se isso ocorresse lhe seria fiel para o resto de seus dias.
Seu filho está sóbrio há muitos anos e desde então ela frequenta a igreja todos os dias.
As tragédias na vida dessa senhora não são poucas, e se um dia ela me autorizar eu conto para vocês.
Mas a ideia de falar um pouco sobre essa senhora é para refletirmos um pouco sobre quem achamos que somos.
Dona Vera acha muito estranho como as coisas funcionam aqui em casa e ficou completamente desnorteada quando a chamei em seu primeiro dia trabalhando na minha casa, para sentar à mesa comigo assim que o almoço (que ela preparou) ficou pronto.
Disse que nos lugares que ela trabalha, existe a louça adequada para ela, que são as quebradas e velhas, e que na maioria das vezes a comida que ela come é diferente da que ela serve para as suas patroas. E que sentar-se na mesa com uma patroa seria algo tão impensável que ela estava morrendo de vergonha de comer na minha frente.
OI?
Senta aí, Dona Vera, vamos almoçar que eu tô morrendo de fome.
O almoço só começa depois que Dona Vera faz uma bonita oração, agradecendo a refeição e pedindo frutos para a (minha) casa e os moradores que nela habitam.
Certa vez, me contou que uma moça ficou com nojo dela no ônibus, por causa de sua cor.
OI?
E outro dia a peguei colocando água da pia no copo para beber.
– PÓPARAR DONA VERA! A senhora sabe que tem água na geladeira e no armário, que que a senhora tá pegando da pia?
OI?
Hoje ela estava me perguntando se eu havia jogado na mega sena, e se eu mudaria de jeito caso ganhasse dinheiro. Respondi que achava que continuaria a mesma, e que se fosse para eu me tornar uma pessoa arrogante que eu não ganhasse então na loteria.
Eu ri da improbabilidade da situação, mas ela não. Ela estava me perguntando de verdade para no final refletir:
– Eu não queria ficar rica não, eu só queria não passar por nenhum aperto, para mim já estaria de bom tamanho.
O que faz a Dona Vera ser diferente de mim? A ponto de não poder beber uma água mineral ou dividir uma refeição comigo?
Essa mulher tem muito mais histórias de superação nessa vida do que muitos de nós reunidos.
Aliás, ela é diferente de mim porque ela tem muito mais raça e força que eu, que sempre tive de tudo, e no pódio da vida ela deveria estar lá em cima, mas não.
Essa sociedade medíocre que vivemos pré-determina quem é digno ou não, esquecendo de fato o real significado que a palavra dignidade possui.
Quem somos nós na fila do pão?
Eu não sei, mas sou daquelas que questiona o significado da minha existência nesse mundo, e qualquer tipo de desprezo me faz ter vergonha dos meus semelhantes , os tais seres humanos.
Ainda tenho muito a evoluir, mas confesso que me dá nos nervos perceber que nessa corrida evolutiva tem muito retardatário por aí!