A VOLTA NO QUARTEIRÃO E O WAKE-UP CALL

A VOLTA NO QUARTEIRÃO E O WAKE-UP CALL

Sabe quando seu dia está indo tudo bem e de repente você fica bleh? Parece que a energia cai, te dá um desanimo sem nenhuma razão específica?

Pois é, esse bode me mordeu essa tarde. Passeei com o Francisco “sofrida”, desanimada e fiquei pensando com meus botões qual era a razão de tal bode súbito.

Voltei para casa.

Precisava sair para comprar umas coisas, mas no meio do caminho decidi antes dar uma volta no quarteirão – para conversar com o tal do bode.

Arrastada e sem animo, na segunda esquina que virei me deparei com uma moradora de rua que nunca havia visto na vida, ela, sua casa-carroça e quatro cachorros.

Cara, não adianta. Eu tiro chapéu para pessoas como aquela senhora. Aqui em São Paulo inclusive tive o privilégio de conhecer o Edu Leporo que fotografou e lançou um livro com a história dos moradores de rua e seus cães – o livro tem lugar de destaque na minha sala.

Pessoas que não tem nada, dividem o nada multiplicando amor com esses peludos.

Puxei papo com ela, muito simpática, me contou que apenas um era filhote. Havia uma moça com carrinho de bebê atrás de mim, o que acelerou o término do nosso rápido bate papo. Desejei boa tarde, ela idem junto com um “Vai com Deus”. Antes disso, ela me perguntou qual era o nome do livro que carregava.

– “Caminho do Amor”, respondi.

Ela sorriu e disse:

– Esse é o melhor caminho.

E fui ao meu destino querendo dar a louca e voltar.

Estava indo comprar dois cupcakes, mas pedi três.

– Segura esses dois que eu já volto.

O dono do café, que já me conhece, me zoou dizendo que voltaria com a boca suja de Nutella, já que afirmei que nenhum dos bolinhos eram para mim.

Ah, Nicole. Um cupcake? Um morador de rua precisa de algo mais útil, não?

Sim. Precisa de MUITO mais coisas mais relevantes que um doce, cacete. Eu sei. Mas fui na intenção de adoçar dias que geralmente são por si só difíceis.

Ela se chama Shirley. E me contou a história de cada um dos cães. Eram cães sofridos, mau tratados, abandonados, de rabos cortados, hérnias de tantos chutes. O shitzu foi abandonado em plena Av. Paulista por um “ser humano” que simplesmente abriu a porta do carro e o jogou para fora. Ela ao vê-lo correndo desesperado, o segurou antes que fosse atropelado.

Todos os quatro tinham histórias de crueldade, até encontrar com essa senhora.

No meio do papo, uma senhora passou com seu cachorro. Elas já se conheciam. Perguntou se Shirley precisava de algo. Precisava de água. E lá foi a senhora buscar em sua casa.

– Shirley, não precisa de mais nada?

– Não, senhora. Muito obrigada!

Me contou feliz que já conhecia aquela senhora já há bastante tempo e que ela sempre a ajudava.

Shirley tem um sorriso bonito. Me contou que já bebeu nessa vida mas hoje não encosta em bebida e nunca mexeu com drogas.

Disse que não liga se a xingam, e que isso acontece muito. Mas não admite que desrespeitem seus melhores amigos.

Shirley me contou também que só tem um amigo de rua, e é dele o quarto cãozinho que ela toma conta – ele foi encontrado morrendo de frio e acuado depois de uma tempestade que teve por aqui.

Vaidosa com seus fiéis companheiros, disse que ela mesmo dá banho neles em uma fonte de água próxima. Disse também que vai a pé até o centro da cidade vacinar seus cães.

Parece que ela já levou os peludos ao Au-au Mania (Petshop do bairro) graças a benevolência das donas e da vaquinha de alguns clientes. Fiquei feliz, pois já conheci as donas e já havia tido uma boa impressão delas.

Shirley vive alugando caixas para os feirantes. Caixas essas que ela consegue em alguns restaurantes da região. Às vezes aluga por 2 ou 3 reais. Raramente por 5. Sabia que era pouco, mas que para ela era bastante dinheiro.

Demonstrou cuidar dos seus cachorros com toda dignidade, mimo e carnes possíveis. Não duvidei. A fêmea descansava com dois laçarotes cor de rosa em suas orelhas. Como ela que dá o banho, tinha que colocar algo, afirmou.

Quatro potinhos com ração faziam parte daquela pequena morada. Cada cão com seu pote.

Conversamos um bocado e em momento algum Shirley reclamou. Disse que estava naquela esquina há uma semana, que lá ela não atrapalhava a passagem e que tinha tranquilidade – por enquanto.

Voltou do trabalho mais cedo hoje por causa do calor, resposta dada quando perguntei onde ela normalmente ficava, pois nunca a tinha visto por ali.

No final da conversa eu disse que a vida dela deveria ser muito difícil, mas que era muito gratificante ver sua bondade com os cachorros. Pedi que ficasse com Deus e que aquele cupcake pudesse trazer um pouco de doçura para a vida dela.

Ela agradeceu, disse que amava doces mas que sua vida era boa.

Engoli seco. Nos despedimos e disse esperar reve-la. Ela sorriu, afagou um dos cães que usava uma meia em uma das patas protegendo de um machucado, e me desejou uma boa tarde.

De arrastada e sem animo precisei de uma volta no quarteirão para ter um wake-up call.

Quem diria que quem iria me animar seria uma moradora de rua com o sorriso mais sincero que o que eu havia dado para o vizinho ao entrar no elevador desgostosa com a vida.

(A foto não foi posada, mas me permiti cometer essa invasão de privacidade. Tenho certeza que uma foto oficial com o sorriso da Shirley e de seus peludos sairia bem melhor, quem sabe em uma próxima volta ao quarteirão?)

Sobre Nicole

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