Dizem que a corrida é um esporte solitário, mas eu tenho que discordar. A corrida não é nada solitária, a corrida é um esporte principalmente de cabeça e quando a cabeça tenta passar a perna é nessa hora que percebemos que não estamos sós.
Usamos a corrida para diversos objetivos: emagrecer, melhorar tempo, aliviar a cabeça e muitas vezes sem nem percebermos usamos a corrida para nos superar.
Cada um que corre corre por uma razão, cada um que corre já tem sua própria história com a corrida.
A corrida é um mundinho particular de cada um, e nos eventos de corridas de rua percebemos a grandiosidade que é “simplesmente” correr. O uso da aspas se dá porque aparentemente correr significa apenas mexer as pernas constantemente em uma velocidade maior que o caminhar. Parece fácil, né?
No sábado participei do “Night Run”, um evento de corrida que começaria no Sambódromo de SP. O evento, segundo jornais, levou DOZE mil pessoas para o Anhembi, quantidade essa de arrepiar qualquer um.
Me inscrevi nos 10km sem nunca ter completado tal distância. Sempre tive batimento altíssimo e nunca acreditei que poderia ir além na corrida. Sempre me satisfiz podendo correr meus 5km, no máximo uns 7,5km com direito a uma andadinha no meio do caminho para diminuir o bpm, afinal de contas, achava que mais kms significaria enfarto na certa, mesmo já tendo feito exames e sendo aprovada.
Voltei a treinar depois de um tempo parada e um belo dia depois de completar os 5km pensei em fazer mais uma volta, depois mais outra, no meio dessa corrida sem nenhuma pretensão começou a chover, poderia desistir mas não, quis ir adiante. Encontrar pessoas que eu sempre via correndo no parque na chuva me deu ânimo, cruzar com um cara agradecendo a chuva mais ainda e muito despretensiosamente com a pista molhada completei meus primeiros 10km da vida.
Quem corre e bate seus próprios “recordes” – sim, para alguns completar 5 km é um recorde, como para outros recorde é completar uma meia – sabe como a sensação é indescritível. A sensação é de capacidade, de orgulho, de ir além, é a materialização da saída da zona de conforto.
Apesar de estar rodeado de alguns gatos molhados, eu estava conquistando aquela vitória só, mas nem por isso deixei de comemorar e voltar para casa sorrindo, descabelada e completamente vermelha.
Eu consegui!
Sábado foi o dia da corrida oficial, milhares de pessoas vestindo a mesma camisa, milhares de pessoas com um único intuito: Cruzar a linha de chegada.
Seria mais uma corrida paga, cheia de superação, música e endorfinas. Bom… Para bom corredor só a endorfina basta!
Mas foi aí que São Pedro resolveu aumentar o nível de água da Cantareira para evitar o racionamento em São Paulo exatamente em um sábado a noite! A prova de 10km começava às 20:30, às 20:10 o mundo resolveu desabar em nossas cabeças sem nenhuma marquise, tenda, nada. A prova de 5km já havia começado. Correr no meio de uma garoa pode ser extremamente agradável, desde que você já tenha começado a correr, o que não era nosso caso.
Era um sábado a noite, nós poderíamos estar bebendo, comendo, poderíamos estar em nossos sofás quentinhos mas não. Milhares de pessoas aguardavam pela prova que começou pontualmente às 20:30 na boca do Sambódromo.
Já estávamos encharcados, com frio, nossos tênis já estavam ensopados e poucos corajosos com a braçadeira em seu devido lugar. Liguei meu Nike GPS e coloquei a braçadeira com o iPhone e o fone dentro da calça. Na arquibancada apenas cinco pessoas de guarda-chuvas, eram a torcida de alguém mas no andar daquela carruagem tornaram-se a torcida de todos.
Nunca havia imaginado desfilar no Sambódromo, quiçá no Sambódromo paulista! Desfilar não! Correr, ou melhor nadar!
Minha estréia na avenida foi atípica. A alegria da entrada na Avenida deu lugar a um misto de apreensão, ansiedade e frio. Éramos milhares, milhares de sentimentos confusos e molhados. A chuva não dava trégua um minuto sequer e até para os mais experientes aquela não seria uma corrida qualquer.
A Avenida do Sambódromo me pareceu muito curta, mas dizem que quando desfilamos não vemos o tempo passar e de repente estamos no final da avenida, vai ver foi isso que aconteceu, rs.
Uma multidão corria por lugares por mim até então desconhecidos. Comecei desviando de algumas poças, mas depois percebi que quem está na chuva já está molhado mesmo, então pé na poça!
O primeiro quilômetro custou a chegar e a chuva apertava cada vez mais. Depois de muito correr (eu estava sem meu GPS no braço então só conseguia me balizar pelas placas) passamos pelo km 3. Já cansada, instintivamente soltei alto:
– Putz! Km 3 ainda???
E no segundo seguinte que vomitei meu pensamento, uma mulher falou em voz alta:
– Faltam só sete!
Não sei se ela havia me escutado, mas naquela hora da corrida tinha certeza que o recado era para mim.
Estávamos impreterivelmente todos na merda, e aquela frase me lembrou que em momentos extremos vence quem olha o copo meio cheio de água (no nosso caso transbordando). Se eu continuasse com aquela mentalidade negativa a prova acabaria mais cedo pra mim.
A prova seguia em silêncio para a maioria, com tamanha chuva poucos arriscaram correr com música. Em certos momentos da prova a chuva era tanta que precisei abaixar a cabeça para me proteger das fortes gotas.
Vez ou outra alguém dava um grito, saudava um amigo do outro lado. Estávamos todos calados mas não estávamos de jeito algum sós. Quando minha cabeça começava a fraquejar olhava aquele mundo de pessoas, na mesma situação que eu, alguns encarando sérios monstros, outros apenas encarando um mal tempo. Todos que estavam ali estavam encarando de frente uma tempestade em seu dia.
Meu iPhone estava na cintura, dentro da calça, e percebi que ele tocava música. Pensei: Se meu iPhone ainda não morreu nessa tempestade, eu não morro antes dele! Confesso que fiquei arrasada quando vi que a contagem dos kms do NikeGPS foi pausada no km 3,4. Meio desolê escutei do namorado:
– Nicky, o iPhone parou de cronometrar mas você não! Anda!
Com o passar dos kms alguns já diminuíam o ritmo, cruzamos com um cara que já tinha ido ao chão, estava mais branco do que a parede. Os corredores passavam por ele e perguntavam se estava tudo bem. Ele não deixou ninguém interromper a corrida por ele.
Corríamos em uma avenida interditada sem uma alma viva, até que uma família de bicicleta passou por nós gritando palavras de apoio e de coragem debaixo de seus guarda-chuvas.
Mais um turbo para a determinação! Curioso que essas pessoas só passavam na hora que sua bateria estava a ponto de arriar.
Depois do km 5 comecei a sofrer, pensei em dividir com o namorado, que corria o tempo todo ao meu lado em silêncio, mas lembrei como o verbo tem poder e como uma palavra negativa poderia quebra-lo, a mim e as pessoas que estivessem a beira da desistência. Guardei para mim, prometi que só falaria algo ruim em situação extrema.
Alguns metros depois um corredor grita: Somos guerreiros!! Olha essa chuva!! Vamos conseguir, galera!!
E graças a uma única frase os ânimos já exaustos dão lugar a mais um pouco de força, foco e determinação.
A cada vinte minutos perguntávamos como o outro estava, e quando não havia resposta não insistíamos, sabíamos que estávamos lutando contra nossos próprios monstros internos.
Realizei que era a primeira vez na vida que corria sem parar, sem dar uma caminhada sequer! E prometi para mim mesma que se havia chegado até ali non stop eu não diminuiria por nada nesse mundo. Não foi a toa que nem levei meu Polar para não apavorar com meus batimentos.
Quando externalizei isso para o namorado, percebi que mal tinha fôlego para falar, ele percebeu e propôs diminuirmos o passo. Nem pensar, foi minha resposta. Ele olhou para mim e disse, nós vamos chegar ao final.
Minha bateria ganhou mais um ponto.
Os últimos dois quilômetros foram de alma, meu corpo já estava se desmanchando, a legging fazia bolsões de água, no rosto de todas pessoas modo automático se segurando em forças tiradas de algum reino mágico.
Km 9. Faltava apenas 1 km, que na teoria era nada em relação ao já completado. Nadando contra a corrente um corredor já com a medalha no peito. Ele repetia incessantemente que faltava pouco, que já havíamos corrido muito e que a chegada estava logo ali! Batia palma e repetia sem parar, aquele cara parecia ter sido plotado ali estratégicamente pelos assistentes de São Pedro e pelos nossos anjos da guarda.
O pouco daquele cara para mim pareceu menos que uma eternidade (antes eternidade e infinito eram meus amigos) e faltando 100 metros uma mocinha da organização nos aplaudia dando mais um up na nossa moral encharcada.
Cruzamos a linha de chegada de mãos dadas, mãos essas que lembravam nossas mãos de criança de tanto ficar na piscina de tão enrugada. A chuva continuava torrencial.
Havíamos completado a corrida. Depois de mais de uma hora tomando muita chuva na cabeça senti um frio surreal enquanto tentávamos buscar nossas mochilas (nós e milhares de pessoas congeladas). Meu rabo de cavalo era um murundu de nós. A hipotermia estava próxima de milhares de nós.
Completamente congelados e no automático nos enfiamos no carro depois de andar por quebradas nunca antes caminhadas, tiramos nossas blusas encharcadas e pegamos a Marginal Tietê semi-nus.
Depois que o ar quente começou a fazer efeito, caímos na gargalhada ao imaginar os motoristas passando por nós naquele temporal com o namorado sem camisa, eu de top e os dois encharcados.
– O que será que esse casal estava fazendo?
Ríamos da situação, do programa de índio, da semi nudez necessária, da ausência de qualquer roupa, pano que pudesse nos secar e das sacolas ecológicas de supermercados que viraram bundinhas de copo, ou melhor porta bunda encharcada.
E aí tivemos a certeza do porque corremos e superamos nossos próprios monstros e limites.
Endorfina! Ela, a razão de nosso ataque de riso e da sensação de satisfação após o caos.
Parabéns aos guerreiros nadadores dos 5k ou 10k, nós mostramos que corrida é força, raça, determinação e também água no nariz igual quando mergulhamos e respiramos errado!
E para fechar:
Tive a certeza que completaria a corrida quando realizei que a única vez que havia feito 10k havia sido embaixo de chuva, então nada mais justo, na cidade da garoa completar meus 10k non stop embaixo de um temporal. Não sei não, mas acho que sou igual ao Senna, funciono melhor na pista molhada!
A todos aqueles que quebram seus limites, seja em uma corrida curta ou seja em uma corrida longa, minha admiração.
E como hoje é domingo, Tadeu Schimit, posso pedir uma música?
Tãn-tãn-tãn. Tãn-tãn-tã!